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Desafio 10 Anos. Porque não adianta correr atrás da autoestima antes de cuidar da autoimagem.

Eu tenho muita compaixão pela primeira moça da foto. Agradeço a tudo o que ela passou, pois se não fosse isso, nada do que tenho e faço hoje existiria. 
A minha história do desafio de 10 anos fala de vergonha, autoestima, patriarcado e muito autoconhecimento. 

Em 2013 eu tinha 28 anos, era super magra e linda. Mas porquê escolhi essas características para começar a contar a história? Por que quase tudo se resumia a isso. Minha vida era dedicada a ser magra e linda. No grupo de amigas eu era considerada empoderada, segura, inteligente, engraçada, etc. Mas por dentro eu era um poço de insegurança. 

Pelo menos era linda: o carro alegórico da vergonha

Eu tinha vindo morar sozinha em Porto Alegre há poucos anos e conforme fui conhecendo novas pessoas, meu sentimento de inadequação se amplificou. Pela primeira vez na vida estava convivendo com amigos que tinham viajado para outros países, feito intercâmbio, liam autores, ouviam música, conversavam sobre assuntos que eu jamais tinha ouvido falar. Mas eu pelo menos era linda.  Todo esforço e energia empreendidos na aparência, que eu usava como um carro alegórico para distrair as pessoas, para ser aceita e ser amada, enquanto conseguia esconder algo do que eu me envergonhava muito: não ser ninguém. Uso essa expressão pois é literalmente o que a minha voz crítica (você consegue identificar a sua?) falava:

– Pára de te achar, tu não é ninguém. (referindo-se a sucesso, carreira, reconhecimento, etc);

O que por muitos anos, encarei como sendo a perspectiva da minha vida, eu não seria uma pessoa de sucesso, mas pelo menos era linda.
Eu me sentia insegura perto de outras mulheres que eu admirava pelo sucesso, mas criticava pela aparência, ficava procurando defeitos estéticos nelas para não me sentir tão mal sozinha.

A compreensão dos fenômenos desta época,  me traz hoje outras formas de conduzir as relações quando estou diante de uma pessoa crítica, seja um conhecido, familiar ou paciente. Pra mim chega gritante: a pessoa que critica está se protegendo da vergonha dolorosa que sente. Eu já estive nesse lugar, você não tem um minuto de paz.

Enquanto eu fosse linda (bonita não era suficiente) as pessoas não iriam perceber que eu não era bem sucedida. Tudo isso tinha um impacto gigantesco na minha autoestima e na forma como eu me relacionava com as pessoas romanticamente e em geral.

Não tente melhorar sua autoestima antes de saber como é sua autoimagem.

Willian James falou que a autoestima é um produto da “percepção de competência em domínios importantes”, ou seja, o quanto pensamos que somos bons com as coisas que tem significado pessoal para nós. Só entendi isso e costurei essa peça na minha colcha de retalhos quando facilitei o estudo do livro Autocompaixão, da Kristin Neff. 

Embora muitos anos depois eu descobrisse que a beleza não era de fato um domínio muito importante, o investimento na aparência tem bastante relação com a minha infância, uma vez que eu fui uma criança muito bonita, conforme os comentários das pessoas.
A beleza era a parte positiva da minha autoimagem, que convivia com a parte vergonhosa, de me sentir inútil, que não servia pra nada, incompetente.

A autoimagem é a forma como vemos e pensamos sobre nós mesmos. Ela é criada a partir de nossas experiências, crenças e percepções, e pode ser influenciada por fatores externos, como a mídia e os comentários dos outros. 
A formação da autoimagem começa na infância, quando começamos a desenvolver noções de nós mesmos e do mundo ao nosso redor. As crianças aprendem a se identificar com base nas respostas e reações dos adultos e dos outros ao seu comportamento. Com o tempo, essas noções vão se solidificando e formando a base da autoimagem.
Resumindo não nos vemos como somos, nos vemos a partir de como somos vistos pelos outros e interiorizamos essa imagem. Eu que cresci em um ambiente de muita crítica, bullying e humilhação disfarçada de humor, não era de se esperar um desfecho muito diferente. Uma pessoa linda e inútil. 

A conta que não fechava:

Autoestima:
 percepção de competência em domínios importantes – ser útil e ajudar a diminuir as mazelas do mundo;

Autoimagem: a forma como vemos e pensamos sobre nós mesmos – Linda e inútil

As coisas que temos mais dificuldade de admitir para nós mesmas do que para os outros.

Não era de se admirar que meus relacionamentos não eram saudáveis. 
Porque eu que sempre me coloquei como uma fortaleza inabalável, desapegada, empoderada, etc (que na verdade só eram mais fantasias para me proteger da dor) eu também não era. Precisei de muitos anos de budismo e uma graduação de psicologia pra aceitar isso.

Voltando a infância, eu cresci no que eu chamei de “uma cultura e mentalidade machista por falta de estudo”. Meus pais são pessoas boas e simples, mas que por questões várias da vida, não tiveram muitas oportunidades de expandir seu pensamento.
Eu cresci ouvindo a minha mãe, uma mulher cansada e sobrecarregada dizer:

– “Quando é que vocês vão casar e sair de casa?”

Somos cinco. Quatro filhas mulheres e um filho homem. 
Minha mãe saiu de casa quando casou com meu pai, aos 19 anos. A mãe dela saiu de casa quando casou com o pai dela, aos 16 anos. Toda uma parada transgeracional que fica resumida aqui. Esse era o modelo de sucesso para a filha mulher. Ela genuinamente queria nosso sucesso, pelo que ela entendia e se orgulhava como sucesso. Porém nós que nascemos após a revolução da contracultura, chegamos num mundo onde a figura da mulher era representada de outras maneiras na televisão.

A mulher que eu admirava na TV estava na jornada do herói, passando por sufocos, mas no fim morava em NY, tinha salvado o dia, a empresa do chefe e conquistado o boy magia. Sempre a porra do chefe homem e um boy que sem ele, a vida ficava incompleta. Ela nunca era a chefe nem ficava melhor solteira. Tudo isso somado a minha autoimagem deformada, de ser linda e incompetente, me levou para uma sucessão de relacionamentos insalubres, seja por infidelidade, posse,  dependência emocional, competição, invalidação.
No fundo eu sentia que estava fadada a repetir o desfecho das mulheres antes de mim: casar e ter filhos como modo de sobrevivência.

Eu saí de casa com 26 anos para morar sozinha. Quando vim pra Porto Alegre, a corrida frenética pela magreza e beleza se intensificou porque eu tinha vergonha de praticamente todos os aspectos da minha vida, sentia que nunca seria boa o suficiente para alguém querer ficar comigo porque eu não tinha uma carreira ou muita perspectiva. Investir na educação da mulheres nunca foi uma política na minha família de origem, pois o caminho conhecido era arrumar um bom casamento que garantisse estabilidade. A carreira era de esposa (“quando vão casar e sair de casa?”)
Eu me debatia nesse processo todo. Sentia que nada disso fazia sentido pra mim, mas a influência da autoimagem era tanta que eu eu não conseguia me desvencilhar. 

Atravessando a dor.

Os nós começaram a desatar quando eu comecei a mexer nas feridas, e quanto mais me aproximava das dores antigas, mais me aproximava de descobrir meus reais valores.
Isso chegou no ápice quando fui fazer um período sabático no templo Budista, que longe de ser um SPA relaxante, foi onde de fato encarei meus sentimentos dos quais me escondia com distrações mundanas, onde comecei a ouvir as barbaridades que a minha autocrítica dizia, etc. Não tinha pra onde correr, era eu comigo mesma.
Nesse período eu comecei a entender que a aparência e a beleza não tinham tanta importância, não me ajudavam a me sentir melhor, pois o que eu valorizava mesmo era ser útil, ser uma peça de transformação, era fazer algo para que a vida das pessoas não fosse tão miserável. Hoje eu chamo isso de propósito.
Não acho que essa seja a resposta para a autoestima de todas as pessoas, mas acho que fugir de encarar a dor e evitar mexer nas feridas, só posterga a resolução dos próprios obstáculos.


Abri a caixa de Pandora, tirei tudo pra fora e comecei a guardar tudo bem organizando novamente. É assim que sinto o que tenho feito com a minha vida. 
Quando voltei do Templo Budista conheci um cara legal que se vê como uma pessoa com defeitos e qualidades, que não é a figura da masculinidade insegura mas que reconhece e acolhe sua sombra. Casamos e hoje temos um cachorro e um filho de 2 anos, que é o melhor ser humano que eu já conheci. Nos arrebentamos pra dar a ele uma infância da qual ele não precise se curar.
Tenho pelo menos 15 quilos a mais do que há 10 anos atrás e me sinto absolutamente maravilhosa, pois minha autoimagem é composta principalmente pelo que escuto do meu marido, meu filho e muitas pessoas queridas que cruzei desde que comecei a dar programas de Mindfulness. Pessoas que me mostraram o quanto eu as ajudei a ver a vida de outra forma, seja com mindfulness, uma conversa, uma sessão de terapia, enfim, o quanto eu posso olhar para a Ane de hoje, de 10 anos atrás, a Ane de 30 anos atrás e dizer que ela é útil, e ela ajuda a diminuir o sofrimento do mundo.

Ane Saraiva

Instrutora Sênior Certificada pelo Mindfulness Trainings International sob orientação do Lama Jangchub Sempa Gyatso. Começou a praticar meditação em 2011 em meio à sua carreira como gestora. Participou de diversos retiros e viveu no Templo Budista Chagdud Gonpa Khadro Ling no ano de 2015, onde teve a oportunidade de conviver com Lamas de diversos países e aprofundar seus estudos sobre Budismo e sua técnica meditativa.